sábado, 30 de abril de 2011

O fumeiro tradicional de Ilda Vicente

O mero acaso levou a Caravana Visão até uma sala de fumo, bem escondido atrás de um míni-mini supermercado sem nome


Bendita fome! Não fosse aquele vazio no estômago e não teríamos ido a Malpica do Tejo. Se não tivéssemos ido a Malpica do Tejo, não teríamos conhecido um dos seus maiores segredos: o fumeiro tradicional de Ilda Vicente. No final, satisfizemos a gula com uma chouricinha à maneira, quatro bifitos de porco preto e batatinha "da nossa". Sem almoço, ficamos 'jantadas' à hora do lanche. Confirma-se: não há fome que não dê em fartura.
A quinta semana da Caravana Visão arrancou a partir do Parque de Campismo de Castelo Branco. Já passava das quatro da tarde e não tinha havido tempo para almoçar. A ideia era seguir para Monforte da Beira, rumo à herdade Monte Barata, uma propriedade da Quercus junto ao Parque Natural do Tejo Internacional, onde nos aguardavam pelo final da tarde. A emoção de iniciar esta aventura atirou-nos rapidamente para fora da zona urbana, sem que comprássemos algo para comer. Não tardou a que estivéssemos no meio do nada. Um telefonema do nosso anfitrião alertou-nos: "É melhor irem primeiro a Malpica do Tejo. Talvez ali arranjem qualquer coisa. Em Monforte da Beira não há nada".
Fizemos o desvio. A fome cegava. À entrada de Malpica dois septuagenários conversavam num banco de estrada exibindo um balde de ovos. "Se mais não for arranja-se uns ovitos", pensei, já desesperada. "Onde é que se pode petiscar?", atirei-lhes. Passada a surpresa da pergunta, indicaram a curva seguinte. E lá estava um café.
Os grandes cafés desabitados sempre foram para mim um mistério. E aqui estava um. Mesas de bilhar snooker  à esquerda, muitas mesas de café à direita. E lá ao fundo, encostados à parede, dois idosos fitando-nos. Por detrás do balcão, um homem de bigode farto logo nos desenganou: "Não há nada para comer". Apenas um restinho de sardinha em escabeche. Alternativa? "Já aí à frente, na pracinha".O Café Sacul era pequeno mas superpovoado...de homens. Foi como entrar num saloon do Far West, tal o impacto que causou o aparecimento de duas forasteiras. Dissemos ao que vínhamos: comida. Os sorrisos espalharam-se pelas caras, num misto de gozo e piedade. Depois de alguma hesitação, lá se arranjaria uns bifitos. Demorariam meia hora. E, entretanto, haveria por ali alguma mercearia, míni-mercado? "Já aqui ao lado". Ufa, finalmente boas notícias.
Ditam as regras que nunca se deve ir às compras com fome. Verdade. Enchemos dois sacos, perante o olhar surpreendido de um casal idoso. Isabel Cabaço, 76 anos, tentava funcionar com a caixa registadora, mas falhou o rolo da tinta. A seu lado, o marido, Remédios Vicente Lucas, 77, supervisionava, sentado. Estão casados há 56 anos, uma vida. Os mesmos anos que ela já trabalha "atrás de um balcão": primeiro no café ao lado, os últimos 30 neste míni-mini-mercado sem nome. "Já não há cá ninguém...", lamenta. "E vocês, vão para onde?", atira-nos. Explicamos quem éramos. Foi então que o segredo se revelou: "Se quiserem ver um fumeiro. É ali atrás... isso é que era importante. É da minha nora".
Ilda Vicente, 48 anos, surge intrigada, mas recetiva. Abre-nos a porta que não tínhamos dado conta que existia. Abre outra à direita e ali está ele: um pequeno quarto com parte do chão coberto de braseiro e, lá no teto, 7 buchos de ossos e dezenas de chouriças e salpicões a serem curtidas pelo fumo. "Se tivesse vindo há uma semana isto estava cheio. Mas os festejos da Nossa Senhora das Neves do último fim de semana levaram quase tudo". Ali trabalham cinco pessoas, incluindo o marido, Jorge. As duas filhas, uma psicóloga e outra farmacêutica, já estão encaminhadas noutra vida. Mas Ilda faz isto todos os dias desde há 18 anos. "Só fechamos 15 dias, a última semana de Agosto e a primeira de Setembro". E gosta, apesar de uma das trituradoras de carne já lhe ter levado dois dedos. "É o último fumeiro tradicional da região. Os outros são todos de estufa".
Vendeu-nos dois salpicões por menos de cinco euros! E deu-nos um cartão: "Faço despacho". As encomendas ficaram prometidas.
Saímos do fumeiro por um míni-mini talho de onde - soubemos no decorrer da conversa - tinham acabado de sair os bifes de porco preto que nos esperavam no café... do cunhado.
Agora sim. De barriga cheia estávamos capazes de enfrentar os mais de 400 hectares geridos pela associação ambientalista Quercus. Sem internet ficamos isoladas do mundo. Durante a noite, fomos nós e os bichinhos.
P.S. - A Caravana Visão recomenda: enchidos tradicionais de Malpica do Tejo, Jorge e Ilda Vicente: 272 913 186 / 919 705 782

By Cesaltina Pinto (texto) e Lucília Monteiro (fotos)

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