Foi preciso persistência, mas ao fim de uma troca de e-mails que durou algumas semanas o mais temido crítico gastronómico francês acedeu dar uma entrevista, a primeira à imprensa portuguesa. Na sede do diário Le Figaro, onde é grande repórter, levantou a ponta do véu sobre a sua forma de fazer apreciações a restaurantes e disse acreditar que, mais ano menos ano, a gastronomia portuguesa vai alcançar o reconhecimento que merece.
Trabalhou em diversas publicações até começar a escrever sobre restaurantes na influente revista Gault&Millau. Foi editor-chefe da emblemática Cuisine et Vins de France revista fundada em 1947 pelo gastrónomo Maurice Curnonsky e está há cerca de 25 anos no conceituado diário Le Figaro, onde é actualmente grande repórter.
Que diferenças encontra na gastronomia dos dias de hoje em relação à sua primeira crítica?
É muito mais leve, simples, legível e menos pretensiosa. Os tempos de cozedura dos alimentos são mais reduzidos e os sabores mais acentuados. Houve uma modificação completa na forma de trabalhar os legumes, o que me parece uma evolução muito boa.
E Portugal, já visitou?
Não conheço assim muito bem. Estive lá três ou quatro vezes.
O que é que recorda da cozinha portuguesa?
Achei que tinha personalidade mas era fácil de compreender. Era muito viva e luminosa. Lembro-me do peixe, do vinho verde. O peixe era deslumbrante. Tenho boas recordações.
Não foi ao sul?
Não. Mas tenho que voltar. Esta conversa está a dar-me vontade de voltar (risos). Neste momento em Portugal vive-se uma espécie de dilema. Por causa da popularidade da cozinha espanhola, e agora da Dinamarca, as pessoas questionam-se por que é que a gastronomia não tem mais projecção internacional. Um país com oito séculos de história, com uma cozinha tradicional forte, produtos de qualidade, muitos deles certificados como DOP e IGP, e continua desconhecido para os gastrónomos.
Isso acaba por mudar. É um pouco como os adultos. Uns têm sucesso aos 24 anos e há outros que têm de esperar até aos cinquenta ou mais. Em Portugal as coisas são boas é uma questão de esperar e a popularidade vai acabar por chegar.
Acha que é um tesouro por descobrir?
Acho que é um tesouro a descobrir, tal como é o Vietname e a Síria, que é extraordinária, apesar dos problemas que tem agora. Há países onde quase não existe tradição culinária, como a Bulgária, alguns em África. Mas hoje há mais abertura, o que significa uma oportunidade para alguns países.
Portugal está nesse patamar...
Completamente. Deve seguir a sua identidade, os produtos regionais, e as coisas vão acontecendo. É que, frequentemente, a actualidade acerca de um país é um bocado manipulada. Agora é a Dinamarca, mas provavelmente daqui a três anos pode ser Portugal. Durante dez anos só se falava de Espanha, de uma forma um pouco excessiva.
Agora fala-se na Dinamarca, também um pouco de mais. Eu fui a Copenhaga e pensava que ia encontrar uma cidade muito gastronómica, mas as pessoas não são gourmets. No entanto, há uma dezena de restaurantes muito bons. Mas são apenas dez, o que não é suficiente para fazer uma identidade gastronómica.
E os restaurantes, como é que os avalia, toma notas?
Só tomo notas mentais, mas estou atento a tudo, analiso tudo. Para mim, um restaurante não é apenas o prato, excepto aqueles muito técnicos em que não há mais nada além do prato. Nesses casos concentro-me no prato, mas para mim é um conjunto de factores.
O cheiro, a música, a iluminação, as sensações, o pessoal. É um todo. Não posso dizer às pessoas para irem a um lugar que é triste ou austero. Tenho que lhes relatar isso, descrever bem a experiência a todos os níveis. As coisas têm de estar bem calibradas.
Mas os factores de avaliação têm um peso diferente.
Depende. Penso que em cada lugar, seja numa crêperie, num balcão japonês, num restaurante italiano, num gastronómico ou num café, têm que se adequar os instrumentos de medida. E dizer 'esta crêperie é muito boa'. Mesmo que o espaço não seja muito confortável e tenha um cheiro intenso, mas onde o crepe é bom, e o ambiente é agradável e genuíno. Tem que se ter alguma flexibilidade e não certezas absolutas.
Mas valoriza mais a comida?
Sim, mas às vezes a comida é média e está tudo bem. É o tal conjunto. A comida tem que ser no mínimo correcta, mas não tem que ser necessariamente muito boa, aí pode prevalecer o ambiente, a simpatia. Se vou comer um bife com batatas fritas em que a carne está no ponto, as batatas são boas e o ambiente também, é perfeito!
E começou a escrever sobre gastronomia na Gault&Millau?
Em 1981, comecei no meio de Maio. Nessa altura a revista estava à procura de um jornalista, eu fui mas disse-lhes que não sabia nada sobre comida. Eles disseram que não havia problema porque ia aprender com eles. Acabaram por não me ensinar nada e preferiram empurrar-me para a piscina. Tive que aprender a nadar sozinho. Aprender a degustar.
Como é que se aprende a degustar?
Tem que se estudar, observar, escutar. Não tem que se ser um grande especialista. Quando se é demasiadamente apaixonado e especializado, é difícil manter o distanciamento. E para mim o distanciamento é o ponto mais importante para se fazer crítica [pega na garrafa de água que está em cima da mesa e exemplifica].
Se estamos muito perto de um objecto temos dificuldade em analisá-lo. Temos de conseguir ver as três dimensões [afasta a garrafa], porque se estivermos dentro da garrafa é impossível. Para mim os apaixonados, os especialistas, estão perdidos no interior da garrafa e querem estar lá dentro. Pensando na gastronomia como se fosse uma casa, eu prefiro estar aqui [distante].
O que é estar "dentro da garrafa"? São os amigos, os jornalistas...
Sim, o guia Michelin e outros. Há pessoas que gostam desse casulo, como se fosse uma espécie de ventre materno. É outra visão. Eu prefiro estar um pouco de lado, à distância. É óptimo.
Essa posição traz-lhe alguns inimigos?
Como eu não tenho vida social não sei quem são os meus inimigos. A minha vida privada é ao redor de alguns amigos, nunca vou a cocktails, jantares, viagens e essas coisas, por isso nunca me cruzo com chefs. Sei que tenho muitos inimigos mas nunca os encontro (sorri).
Também fez parte do júri do primeiro ranking dos 50 melhores restaurantes do mundo.
Estive nas duas primeiras listas e tentei fazer alterações porque achava a classificação absurda. Não havia restaurantes asiáticos, nem jurados asiáticos. Apontei estas falhas e até tentei constituir um painel de jurados asiáticos. Depois apercebi-me que aquelas pessoas não iam àqueles restaurantes todos. Não era uma coisa séria, deontológica. Eu próprio, que tenho a oportunidade de viajar bastante [no Le Figaro, François Simon também escreve sobre viagens, moda e perfumes], faço reservas noutro nome e no fim pago a conta [tira da carteira três cartões de crédito com nomes diferentes], não consigo ir a todo o lado, não tenho tempo. Participei para tentar melhorar alguns aspectos, mas desisti.
By Fortunato da Câmara
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